Ferreira de Brito
Prometi no meu penúltimo artigo publicado neste jornal voltar ao pensamento complexo e original de Renan, porque as suas ideias sobre Religião, Filosofia, História, Política, Antropologia (isolando entre parêntesis a sua heterodoxia num plano meramente dogmático) se apresentam captadas por uma fina sensibilidade, que, aqui e além, chocam com a nossa actual cultura religiosa e social, como quando afirma a desigualdade das raças e se coloca numa postura "colaboracionista" em relação à Alemanha. Ou, ao sustentar nos seus Diálogos Filosóficos (1876), que, se um dia, na marcha da História, a humanidade chegar a um estado de superior de realidade e de virtude neste planeta terra, será na Alemanha que ele se produzirá, porque era ela que pouco se importava com a igualdade e a dignidade dos indivíduos. Ou ainda que a França nunca atingiria esse estado de grande harmonia, já que sempre se inclinou para soluções liberais e democráticas, de que dava uma soberba amostra com a Comuna de Paris, que tão negativamente o impressionou. Ou até quando sustenta que, se a religião fosse uma quimera, já há muito tempo teria desaparecido, e que, se ela fosse susceptível de uma fórmula definitiva, já há muito que ela teria sido encontrada. Ou, finalmente, quando defende que a natureza não nos revela Deus, porque ela é imoral, sendo-lhe indiferente o bem e o mal.
Mais numa óptica de filósofo do que na de teólogo, Renan termina o seu estudo A Metafísica e o seu futuro com uma série de perguntas, que eu diria serem mais de carácter místico do que crítico, constituindo numa espécie de apoteose angustiada, em estilo interrogativo, emocionado, em que o filósofo se converte, momentaneamente, em poeta, elabora uma oração que aqui transcrevemos, dada a sua exemplaridade:
"Ó Pai celeste, ignoro o que tu nos reservas. Esta fé, que tu não nos permites apagar dos nossos corações, será ela uma consolação que tu preparaste para nos tornar suportável o nosso frágil destino? Será uma benéfica ilusão que a comiseração sabiamente combinou, ou será um instinto profundo, uma revelação que é bastante para aqueles que são dignos dela. Será o desespero que tem razão e será que a verdade é triste? Tu não quiseste que estas dúvidas recebessem uma resposta clara, a fim de que a fé no bem não ficasse sem merecimento, e que a virtude não fosse um cálculo. Uma revelação clara teria tornado a alma nobre semelhante à alma vulgar; a evidência em tal matéria teria atingido a nossa liberdade. Foi das nossas disposições interiores que tu quiseste fazer depender a nossa fé. Em tudo o que é objecto de ciência e de discussão racional, tu concedeste a verdade aos mais engenhosos; na ordem moral e religiosa, tu julgaste que ele deveria pertencer aos melhores. Teria sido uma iniquidade que o génio e o espírito constituíssem aqui um privilégio, e que as crenças, que devem ser o bem comum de todos, fossem o fruto dum arrazoado mais ou menos bem conduzido, de procuras mais ou menos favorecidas. Bendito sejas por te teres escondido, bendito sejas por teres reservado a liberdade plena dos nossos corações!"
Razão e coração, mais razão que coração, de mãos dadas para bater à porta do mistério com este rico e lúcido poema em prosa.